Momento Terapia: a influência dos padrões de consumo no desenvolvimento emocional infantil

O conceito de infância é uma construção histórica relativamente recente, mas é consenso em todas as teorias psicológicas e do desenvolvimento humano que ela é um período crucial e determinante na vida de todo indivíduo.

Certamente, olhando para a sua história de vida, você se recorda e identifica situações e experiências da infância que trazem algum tipo de desdobramento para a sua vida atual, mas este será assunto para um texto futuro.

Neste, quero aproveitar a Semana da Criança, para trazer algumas reflexões sobre como as relações de consumo têm sido trabalhadas nesse período da vida e de que maneira elas têm afetado o desenvolvimento emocional da criança e a relações familiares atualmente.

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Durante um período de minha carreira, dediquei-me ao atendimento de crianças, foi um período maravilhoso, rico em experiência e aprendizado. Pude observar e aprender sobre as mais diversas situações e comportamento, inclusive sobre como padrões de consumo influenciam diretamente a dinâmica familiar e afetam (positiva e negativamente) o desenvolvimento emocional das crianças.

Veja bem, não é o meu intuito apontar dedos, gerar culpas ou apresentar soluções milagrosas. Meu convite é para olharmos com amorosidade e respeito, para a forma como temos apresentado esse mundo caótico e consumista aos nossos pequenos e as consequências disso para a sua saúde emocional.

Tropeços e erros fazem parte do itinerário e podemos corrigi-los com zelo e amor.

Inseridos numa rotina cada vez mais estressante, muitos pais desenvolvem alguns mecanismos de compensação, voltados para o consumo, nem sempre saudáveis, na sua relação com os seus filhos pequenos. Vamos explorar a seguir, alguns exemplos desses mecanismos.

O pensamento clássico de que “o que importa é a qualidade e não a quantidade de tempo que passo com o meu filho” só é verdadeiro até a página dois. Não adianta querer compensar períodos de ausência com presentes, passeios ou viagens incríveis, isso será bastante divertido para a criança, é fato, mas não suprirá a sua carência física diária.

Criança demanda tempo: em quantidade e em qualidade, não há como fugir disso.

Criança demanda presença: é através da presença que ela desenvolverá mecanismos de identificação, noção de pertencimento, sensação de amparo, segurança, cuidado e amor.

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Por uma questão de segurança, e esse aspecto precisa ser considerado, já que vivemos uma epidemia de violência, muitas famílias constroem um verdadeiro bunker tecnológico, sob o pretexto de proteger os filhos do mundo lá fora. É um fato, a violência trouxe impacto negativo para a infância atual, mas precisamos estabelecer critérios, se não, surtamos todos! Mudou-se a dinâmica das brincadeiras e o próprio convívio social. Se no passado era possível as brincadeiras e estripulias nas ruas, hoje a tendência são crianças mais reclusas, explorando a tecnologia e construindo relações de maneira diferente das construídas por seus pais no passado.

Obviamente a tecnologia é uma benção e se, usada com sabedoria e moderação pode ajudar e muito o desenvolvimento infantil. Mas, pode ser prejudicial a criança passar boa parte do seu tempo na frente da TV ou brincando com tablets ou smartfones que só oferecem distração e pouco contribuem para o seu desenvolvimento. Moderação é a palavra-chave. Seu filho não precisa (e nem deve) ser privado da tecnologia, mas convenhamos, ele não precisa de um iPhone para ser um indivíduo mais inteligente ou feliz.

Ainda sobre o tempo gasto na frente da TV, é sabido que a publicidade faz mal às crianças e hoje dispomos de órgãos que regulam e punem a propaganda irregular, o que é uma conquista importante. Mas, continua sendo dever da família, fazer o filtro e protege-las dos excessos. Nessa fase da vida, elas ainda não dispõem do senso crítico adequado, então é tarefa dos pais cuidar para que elas não sejam tão impactadas pelo apelo publicitário. A luz de alerta acende, quando pais acreditam, de maneira inconsciente na maioria das vezes, que podem compensar ou recompensar os filhos com produtos e serviços diversos, para amenizar um possível sentimento de culpa ou frustração, por exemplo. Isso péssimo, pois contamina não apenas a relação pais e filhos, como reverberará nos tipos de relações que a criança construirá com as outras pessoas ao longo de sua vida.

Precisamos levar em conta ainda, que a criança pequena não dispõe de repertório emocional para discriminar fantasia e realidade. Assim, ter a sandalinha da personagem X, a transforma na personagem X; cortar o cabelo idem ao do jogador de futebol, a transforma no jogador de futebol; comer o tal biscoito ou tomar o tal achocolatado a torna com os mesmos superpoderes do herói da embalagem. Logo, é importante e urgente a reflexão dos modelos de identificação que temos apresentado aos pequenos. Novamente, o botão da moderação deve ser acionado. É válido e necessário que o imaginário da criança seja estimulado, mas existem formas de se fazer isso, o que não podemos admitir é que ela seja invadida por tantos conteúdos que a impeçam de ser ela mesma e sabotem o seu desenvolvimento emocional saudável.

Por exemplo, há pouco falei dos mecanismos de identificação e da noção de pertencimento que elas desenvolvem nessa fase da vida.

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Você já deve ter presenciado a cena de uma criança que calça os sapatos ou imita a maquiagem da mãe, ou quer copiar o estilo de roupas e o cabelo do pai. Isso é absolutamente saudável e faz parte desse movimento de identificação. E, pode ser um momento ótimo para fortalecer os vínculos, um passatempo divertido, uma maneira lúdica de trabalhar as relações, manifestar amor etc. Outra coisa totalmente diferente e extremamente nociva é os pais estimularem as crianças a serem “mini adultos”, pode até ser a maior fofura do universo, mas a mensagem transmitida para a criança é a de que ela precisa ser daquele jeito para ser amada. Imaginem as consequências emocionais disso a longo prazo!

Quando ouço afirmações do tipo “as crianças de hoje são muito consumistas”, sempre devolvo com questionamentos do tipo:

– Quem são os provedores do lar?

– Quem alimenta o ideal consumista atendendo ao apelo do filho?

– Que tipo de imagem de pai/mãe transmito ao meu ciclo social quando o meu filho chega a escola ou a festa do amiguinho com aquele visual incrível ou fazendo uso de um objeto caro? Beneficio-me disso para me sentir inserido em determinado padrão social?

 

Então, não é que a criança de hoje seja mais consumista, ela é o resultado, na maioria das vezes, do padrão de consumo da família. Porém, é quem sofre as piores consequências disso, pois, por não discernir as mensagens implícitas dos produtos, pode se tornar consumidora compulsiva de um leque de produtos e serviços com intuito de suprir o vazio que é da ordem afetiva e emocional. Se nós adultos caímos nas armadilhas publicitárias o tempo todo, para os pequeninos o cenário é ainda pior.

Assusta-me a quantidade de serviços voltados para crianças, principalmente para meninas: cabelereiros, manicures, Spas dentre outros, um estímulo desnecessário e precoce que rouba delas os melhores anos de sua infância e de quebra as colocam no esquizofrênico mundo do ideal de beleza, que todas nós, mulheres adultas, precisamos lidar todos os dias de nossas vidas. Isso é muito cruel, não é mesmo?

Pense nisso da próxima vez em que for oferecer ao seu filho uma experiência, que supostamente, foi criada para o seu “bem-estar”. O que essa experiência ou produto favorece no seu desenvolvimento emocional/comportamental?

Talvez a essa altura, você esteja se autoflagelando, consumido (a) em culpa achando que fez tudo errado e já estragou a vida do seu filho. Respire fundo, acalme-se, olhe com amorosidade para si e acredite, é possível amenizar e corrigir muitos danos cometidos involuntariamente.

Filhos não vêm com manual de instrução, pais idem, então a primeira crença da qual você precisa se livrar é a de que pais devem ser extraordinários. As crianças não precisam de pais extraordinários, elas precisam de pais suficientemente bons. E pais suficientemente bons cuidam, zelam, amam, acolhem, mas também frustram, dizem não, impõem limites e regras. Pais suficientemente bons falham as vezes e isso faz parte da vida – que bom!

Dê menos presente, seja mais presente.

Não compre pacotes de bem-estar, seja a própria experiência de bem-estar. Reavalie as suas experiências de consumo. Não subestime o poder do diálogo e a capacidade de entendimento, mesmo as crianças mais pequenas são capazes de compreender. Resgate brincadeiras, cultive tempo juntos, brinque e role no chão, faça coisas ridículas. Essa fase passa muito rápido, permita que ela seja vivenciada de maneira simples, adequada, segura. Essa é maior contribuição, o melhor e mais valioso presente você que poderá dar ao seu filho. Na fase adulta, ele poderá até se lembrar com saudade algum brinquedo, mas nada substituirá ou será mais valioso do que a sua memória afetiva. E é isso o que realmente importa.

Marleide Rocha

Marleide Rocha

Marleide Rocha, psicóloga (CRP 95323), é especialista no tratamento da Obesidade, membro da Sociedade Brasileira de Coaching e da European Network for Positive Psychology e da APPAL - Associação de Psicologia Positiva da América Latina. Nossa colunista escreve aos sábados no Comethica. Acompanhe-a no www.marleiderochapsicologia.com.br.

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